As faces e interfaces da solidão na Alergia Alimentar

Mateus, Lucas e Felipe

Por Flavia Ribeiro

“Solidão amiga do peito
Me dê tudo que eu tenha por direito
Me diga, me ensina.”

A estrofe da música Tão Longe, do Barão Vermelho, grupo que fez muito sucesso quando os pais que estão na casa dos 40 eram crianças, reflete bem momentos que muitos de nós, pais de alérgicos, nos deparamos nas vivências impostas pela alergia alimentar. Mas como diz a música, a solidão pode nos deixar longe de muitos, mas perto de nós mesmos e com certeza ela nos ensina.

Quando eu completei um ano de contribuição aqui no Conexão Alimentar a editoria resolveu pedir aos leitores sugestões de pautas para que eu desenvolvesse nos próximos meses. O tema solidão foi recorrente. Então cá estamos falando, pensando e descobrindo sobre Solidão na Alergia Alimentar.

Numa conversa com a psicóloga Érika Campos Gomes, que também é colaboradora aqui e é pesquisadora sobre os impactos sociais da alergia alimentar, ela nos disse sobre algumas facetas da solidão que geralmente acomete o público que é base para sua pesquisa. Conversamos sobre a solidão da mãe cuidadora, da criança alérgica, da falta de políticas públicas de conscientização e sobre a solidão do pai provedor, que muitas vezes precisa aumentar a jornada de trabalho com a descoberta da alergia e o consequente aumento dos gastos.

Jornada solitária

Eu pessoalmente sempre pensei muito sobre a solidão da mãe cuidadora que parece fazer uma jornada muito solitária em busca de médicos, tratamentos, alimentos e estratégias pra evitar que a criança viva a solidão do isolamento social, da discriminação, do cuidado que impede experiências típicas do desenvolvimento. Erika revela que são as mães que respondem às pesquisas sobre alergia, são elas também a maioria nos consultórios médicos em busca de tratamentos e exames. “Em geral a jornada é muito feminina, mas o compartilhamento com os parceiros melhora a qualidade de vida de toda a família. Essas mães precisam de ajuda dos parceiros, precisam ter grupos de apoio e terapia. Os primeiros meses de descoberta da alergia são perturbadores e muitas vezes coincidem com os primeiros meses de vida da criança. É muita mudança junta”, explica a psicóloga.

Jesse, Ester e Elisa

Não é raro que essa mãe cuidadora precise fazer pausas em sua vida profissional, inúmeras vezes também essa mãe não consegue manter o ciclo originário de amizades, às vezes não consegue nem ir às festas de família. “A gente prefere nem ir. Elas ficam curiosas pra comer o que as outras crianças estão comendo e a gente se sente mal com isso”, revela Josi Gama, social média, 36 anos, mãe de Ester, 6 e Elisa, 4 anos, alérgicas múltiplas. Josi abriu mão do emprego formal que tinha para se dedicar aos cuidados com as meninas.

Marido dela e pai das meninas, Jessé Gama, 34 anos, técnico de eletrônica diz que o olhar dos outros incomoda. “Eles olham com preconceito”, revela. Então esse casal vive a solidão familiar do isolamento social, frequentando basicamente as casas das mães. “Elas compreendem e é seguro para todo mundo. Se prepararam comprando panelas e utensílios novos”, explica o pai.

Erika diz ainda que em sua vivência de consultório e pesquisa existem crianças de três anos que não convivem com outras da mesma idade. “Crianças que não conhecem crianças. São solitárias, vivem a infância sozinhas. São os filhos de pais que não saem de casa porque têm muito medo das reações. Mas é importante traçar estratégias para sair da bolha de forma segura. Tem horas que é melhor andar só, do que mal acompanhado, mas é possível lutar por conscientização na escola, no grupo de amigos, nos ambientes onde a criança convive. Isso vai promover a inclusão com segurança. Por outro lado, é importante entender que os grupos de convívio mudam durante a vida e que nem sempre será por causa da alergia. Mas sempre é importante encontrar uma rede de apoio. Grupos de pessoas que tenham afinidade com seu momento de vida são sempre boas companhias”, explica.

Sem políticas públicas

A psicóloga Nahara Leite Ribeiro, 46 anos, diz que a maior solidão que percebeu em sua jornada de alergia com a filha Anita, 7 anos, foi a da falta de políticas públicas de enfrentamento. Só recentemente ela entendeu que a filha precisava de uma caneta de adrenalina como forma de proteger a sua vida em caso de reações anafiláticas.

“Falta informação. A palavra é informação. Não ficou claro pra mim a gravidade dos riscos, a diferença entre a alergia que apresenta reações tardias e a que provoca uma anafilaxia. Só agora, depois de algumas reações muito sérias eu entendi, lendo o Conexão, que eu precisava de uma caneta de adrenalina para proteger a minha filha. Eu vivi a solidão da falta de informação e de acolhimento nas emergências médicas”, revelou.

Responsabilidade

Falar sobre solidão nem sempre é fácil, mas a tomada de consciência sobre a solidão do pai que é parceiro, mas que nem sempre está presente, foi impactante pra mim. Não que eu nunca tivesse pensado e ouvido o meu marido lamentar a ausência em festinhas de escola ou até em eventuais dias de aniversários das crianças, mas ouvir da psicóloga impressões da sua atuação e as falas de alguns pais foi reflexivo.

“Eu me senti na responsabilidade de ser ponto de apoio pra eles, mas existe a solidão de não ter válvula de escape para sua própria solidão”, diz Mateus Almeida, 44 anos, executivo de banco, o pai do Conexão Alimentar, marido da Bianca e pai do Lucas, 10 anos e do Felipe, 5, que não é alérgico. Eles moram fora do Brasil, as crianças nasceram na Inglaterra e nos EUA. Quando foram pais, eram apenas os dois com um bebê, que quando começou a comer apresentou reação alérgica. Eles não tinham nenhuma rede de apoio familiar. Um contava apenas com o outro.

“Eu sou sempre uma pessoa positiva, que acha que sempre vai dar tudo certo. Mas eu pensava muito em como encontrar maneiras de garantir que o Lucas vivesse experiências na casa dos amigos, que tivesse vida social o mais normal possível e como evitar que ele vivesse a solidão. Eu vivi muitas experiências nas casas dos meus amigos. Eu sempre podia comer na casa deles e eu queria uma forma de garantir isso pra ele. Estar fora do Brasil está sendo muito rico para todos nós. Eles estão vendo que é possível viver em qualquer lugar, com alergia ou não”, explica.

Salatiel, Pedro, Joaquim e Maria

Consciência

Fala parecida com a de Mateus tem o meu marido, Salatiel Pizelli, advogado, 44 anos, pai de Pedro, 14 anos, Joaquim 12 e Maria prestes a fazer sete. Quando descobrimos a alergia do mais velho e o segundo estava a caminho, ele investiu em ampliar sua cartela de clientes e isso implicou em muitas viagens e muitas ausências.

“Eu tenho consciência que eu precisava fazer o que fiz. Foi o jeito que eu encontrei de dar conta de tudo o que precisava dar, mas eu senti o impacto de muitas coisas que não vivi com eles, principalmente com Pedro e Joaquim. E eu não lamento por nada disso. Eu não tenho direito a desmoronar. É o que tem pra ser feito e eu vou fazer”, diz o pai que sempre esteve em todas as consultas com o alergista, que faz todas as compras de novidades gastronômicas, que nunca viajou a trabalho sem visitar um mercado em busca de alimentos que eles pudessem consumir. Eu entendo que ele não perdeu tudo o que acredita e que desenvolveu seu jeito de estar sempre presente. Mas talvez ele e outros que vivem ou viveram essa solidão não tenham essa consciência.

Jessé reflete o mesmo sentimento de responsabilidade. Ele conta que com o nascimento da segunda filha e as necessidades crescentes de alimentos especiais, consultas e exames médicos ele buscou trocar de trabalho. “Eu preferia ter rotina, mas poder cumprir com todas as necessidades não têm comparação. Agora eu não consigo almoçar em casa todos os dias, nem levar ou buscar elas na escola sempre, mas eu consigo pagar as contas. O plano de saúde era o que mais me preocupava e agora não preocupa mais. Estou em paz com o trabalho e com as contas”, revela.

Para os pais que vivem essa solidão a Érika diz: “Eles precisam aproveitar o tempo livre com as crianças, como parceiros que se envolvem e se conectam com os filhos. Que não tenham culpa por estarem oferecendo o melhor a esses filhos. Fazer escolhas para a família e pelos filhos não deve ser motivo para que se sintam culpados”, finaliza.

Flávia Ribeiro Nunes Pizelli, jornalista,
produtora de conteúdo e mãe de alérgicos!
E-mail: ribeironunesflavia@gmail.com

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