Por Rodrigo Fonseca Martins Leite, médico psiquiatra e diretor de relações institucionais do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP
O instinto de sobrevivência é certamente o conjunto de comportamentos e reações fisiológicas mais ancestral da espécie humana: na reação de “luta ou fuga”, o organismo aumenta o rendimento cardiovascular e muscular e “pernas pra que te quero” para fugir do terror de uma ameaça grave à vida. Por isso, já adianto: minimizar a pandemia e desqualificá-la utilizando termos como “paranoia” ou “histeria coletiva” não contribui para o manejo adequado de um cenário inusual. Não é loucura se preocupar com a autopreservação.
A última pandemia foi a da gripe espanhola nos idos de 1918 e 1919 e não há ninguém vivo para contar a história. Temos que lidar com o medo e a incerteza e estes são os ingredientes da angústia coletiva que vivemos agora mais nitidamente no Brasil. Não se deixe conduzir pela negação. É preciso estar atento e forte. Os arautos da pós-verdade e os anticientíficos estão calados frente às evidências.
A redução do orçamento do Sistema Único de Saúde repercute negativamente na política pública de saúde mental. Em torno de 60% dos 5.570 municípios do País não têm um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) sequer e nem terão. A desassistência em saúde mental nos países em desenvolvimento é apontada pela Organização Mundial da Saúde desde sempre. Infelizmente, este diagnóstico não motiva suficientemente os gestores que, por conta de outras demandas críticas e a limitação orçamentária no setor, seguem encarando a política de saúde mental como algo secundário a despeito da elevação das taxas de suicídio, do uso problemático de álcool e drogas e do sofrimento psíquico geral advindo do desemprego, da falência financeira, da violência e dos lutos cotidianos. Somos o primo pobre e estigmatizado da saúde e recebemos a menor parte do bolo de recursos. Simples assim.
Espero que você já esteja sensibilizado pelo cenário que descrevi. Agora, imagine uma pandemia sobreposta: quem vai se lembrar dos portadores de transtornos mentais? Tivemos recentemente uma crise no abastecimento do carbonato de lítio em todo o território nacional. Essa medicação é a principal ferramenta farmacológica na estabilização de pessoas com transtorno bipolar em todo o mundo. Os motivos para tal não foram esclarecidos o suficiente: falta de matéria-prima? Desinteresse comercial pelo medicamento? Ficou realmente vago compreender por que uma medicação barata e corriqueira, cuja eficácia é comprovada desde os tempos hipocráticos, desapareceu das farmácias públicas e privadas.
Mais calamidades como terremotos, furacões, guerras, Brumadinho, Mariana e epidemias geram invariavelmente uma ruptura na logística de produção e distribuição de medicamentos essenciais. É um dos primeiros sintomas do colapso da saúde. O produtor não produz, o distribuidor não distribui e o paciente não acessa.
Os pacientes crônicos, incluindo os portadores de transtornos mentais graves e persistentes, fazem uso de medicação por tempo indeterminado. Ainda não foi divulgado nenhum plano de contingência para tal. Pensemos nos programas para pacientes com hipertensão, diabetes e HIV, por exemplo. O foco de todo o sistema será compreensivelmente voltado para a pandemia, mas os programas de saúde pública já instituídos não poderão ser negligenciados. É conhecido o fato de que portadores de transtornos mentais morrem precocemente por causas cardiovasculares como infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral. São condições potencialmente evitáveis na presença de um sistema de saúde funcionando em condições normais de temperatura e pressão.
As epidemias em geral elevam as taxas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), diretamente relacionado a experiências catastróficas. Em Hong Kong, a epidemia do vírus da síndrome respiratória aguda (SARS) em 2003 trouxe cicatrizes psiquiátricas: 40% das pessoas que adoeceram de SARS grave estavam sofrendo de TEPT dez anos depois! Os transtornos mentais surgem de causas multifatoriais e o estresse é a gota d´água de uma tempestade perfeita neurofuncional que pode evoluir sob a forma de sintomas duradouros e incapacitantes e risco de suicídio.
Já que o debate nacional gravita basicamente em torno da economia, nunca é demais ressaltar que os transtornos mentais, em particular a depressão, os transtornos ansiosos e o uso problemático de substâncias são uma importante causa de incapacidade transitória ou permanente para o trabalho no mundo. Em 2015, os transtornos mentais corresponderam a 9,5% do montante de anos vividos com incapacidade definidos pela sigla DALY (disability adjusted life years) no Brasil.
Para simplificar, essa medida é a soma dos anos de vida perdidos por morte prematura e dos anos vividos com incapacidade. Alguns estudos epidemiológicos reportam que a primeira causa de anos vividos com incapacidade no Brasil se deve aos transtornos mentais. Vide o índice de afastamentos no trabalho relacionados à psiquiatria – o popular “CID-F”, muitas vezes prolongados ou definitivos. Com a pandemia, é plausível pensar num aumento significativo na quantidade de indivíduos com problemas de saúde mental. Investir nessa área é um dinheiro bem gasto em tempos de uma retração econômica em curso. Menos gente trabalhando é menos gente consumindo.
Vivemos uma discussão no meio médico e jurídico do País sobre as implicações éticas da telemedicina. Pois bem. A saúde mental tem inúmeras experiências bem-sucedidas com uso de tecnologias a distância no mundo e no Brasil. Estudos acadêmicos em telessaúde mental do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP trouxeram resultados promissores e seguros para o tratamento de pacientes com transtornos depressivos com essa ferramenta.
Com a limitação na circulação livre de pessoas, a possibilidade de quarentena e um cenário preocupante na saúde e na sociedade brasileira, para dizer o mínimo, a telemedicina terá um papel fundamental na manutenção e ampliação do acesso ao cuidado dos pacientes do sistema público ou privado. Crises trazem oportunidades.
Além disso, agora estamos incluindo o risco ocupacional dos profissionais de saúde. Somos uma população de risco e linha de frente assistencial num contexto de pandemia. Os conselhos, associações e sociedades profissionais juntamente com o Poder Judiciário poderiam catalisar a implantação definitiva da telessaúde no Brasil, além de outras reivindicações igualmente sensatas. Não podem faltar sabão, álcool-gel e equipamentos de proteção individual para médicos, enfermagem, pacientes e acompanhantes nos hospitais, por exemplo. Afastamentos e vidas de médicos, enfermeiras e outros profissionais seriam poupados e o acesso à saúde para a população, assegurado de uma forma mais inteligente.
As notícias da China, Itália e restante da Europa não nos deixam numa posição confortável. Temos que cuidar de quem cuida e rever o modo analógico de atuar na saúde. Os desafios do século XXI não permitem mais delongas.
Os três poderes, elaboradores e gestores de políticas públicas, formadores de opinião e os profissionais de saúde, da tecnologia da informação e do direito têm o dever de acelerar o debate social e concretizar planos para a grande crise que paira sobre o setor da saúde ao longo dos próximos meses. Não se trata de alarmismo. Trata-se de proatividade e responsabilidade ética e sanitária. Muito cedo para pensar nisso tudo?
Fonte: Jornal da USP